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Núcleo Macabéa

DEZUÓ (2010)

Instalação Cenográfica e Figurinos: Telumi Hellen Dramaturgia: Rudinei Borges Direção: Patricia Gifford Atuação: Edgar Castro Direção Musical/músico em cena: Juh Vieira Assistente de Cenografia: Andreas Guimarães Cenotécnico: Edson Luna Adereços: Clau Carmo Apoio Técnico: Thales Alves Costureira: Vera Lúcia Honório Iluminação: Felipe Boquimani Preparação Corporal e Vocal: Antônio Salvador Projeto Gráfico: Murilo Thaveira > casadalapa Fotografia e Vídeo: Cacá Bernardes e Bruna Lessa > bruta flor filmes Assessoria de Imprensa: Adriana Monteiro Direção de Produção e assistência de Figurinos: Isabel Soares Parceira: Casa Livre Realização: Núcleo Macabéa, ministério da Cultura e Prêmio Funarte de Teatro Miriam Muniz 2014 Dezuó - Texto Crítico Link: https://rudineiborgesblog.wordpress.com/2023/08/18/recepcao-critica-da-dramaturgia-de-rudinei-borges/ José Cetra Filho O texto conta a história do menino Dezuó que, assim como Rudinei Borges dos Santos, autor da peça, nasceu e morou em cidades ribeirinhas do rio Tapajós e próximas à rodovia Transamazônica e viu sua vila natal ser destruída ao ser invadida pelas águas devido à construção de uma hidrelétrica. Após a destruição de seu lar, Dezuó muda-se para a cidade grande, onde se sente um estranho no ninho. Patricia Gifford acreditou que o texto poderia resultar em espetáculo e, amparada em seu talento e na cenografia criada por Telumi Hellen, criou uma belíssima tradução cênica. Em uma plataforma circular de cerca de três metros de diâmetro, o menino Dezuó, munido de barro e pequenos objetos, constrói o seu vilarejo, nada no rio criado a partir de água derramada na plataforma e mostra a destruição do vilarejo quando a água o inunda. O ambiente urbano, quando Dezuó vai para a cidade grande, é criado fora da plataforma, em um tom cinzento e frio. O espetáculo é essencialmente visual e sensorial. Em uma interpretação que se soma aos excelentes trabalhos masculinos do primeiro semestre de 2016, o também paraense Edgar Castro entrega-se visceralmente à personagem, lambuzando-se de barro e de água. Somatória dos talentos do autor Rudinei Borges dos Santos (que já havia nos brindado com o poético Dentro é lugar longe,da Trupe Sinhá Zózima, em 2013), da encenadora Patrícia Gifford (da Cia. São Jorge de Variedades e mola mestra do inesquecível Barafonda, de 2012), da cenógrafa Telumi Hellen (que participou do Centro de Pesquisa Teatral e foi assistente de J. C. Serroni) e do ator Edgar Castro (realizou trabalhos com a Cia. do Latão, a Cia. Livre e a Cia. São Jorge de Variedades), Dezuó só poderia resultar nessa verdadeira preciosidade.

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EPÍSTOLA.40 (2016)
 

Cenografia e Figurino: Telumi Hellen Dramaturgia e coordenação: Rudinei Borges Encenação: Edgar Castro Atuação: Alexandre Ganico, Andrea Cavinato, Daniela Evelise, Dionízio Cosme Do Apodi, Heitor Vallim Iluminação: Felipe Boquimpani Sonoplastia: Dani Nega Produção: Fernando Gimenes Programação Visual: Renan Marcondes Fotografia e Vídeo: Cacá Bernardes, Bruna Lessa / Bruta Flor Filmes Assistência de Direção e preparação corporal: Raoni Garcia Assistência de Figurino: Claudia Melo Pintura cenográfica: Thalita Gomes, Claudia Ferreira, Anny Soares, Amanda tolentino de Araújo Oficina de história Oral: Marcela Boni Oficina de jogos grupais: Rani Guerra Oficina de cultura popular: Cleydson Catarina Oficina de teatro e imaginário: Andrea Cavinato Palestra - Clarice Lispector: Gilberto Martins Revisão de texto: Airton Uchoa Neto EPÍSTOLA.40: CARTA (DES)ARMADA AOS ATIRADORES - Texto Crítico Link: https://rudineiborgesblog.wordpress.com/2023/08/18/recepcao-critica-da-dramaturgia-de-rudinei-borges/ Resistência poética, política, dramatúrgica Alvaro Machado Epístola.40: carta (des)armada aos atiradores atualiza para os anos 2010 a grande poesia a um só tempo lírica e épica do pernambucano João Cabral de Melo Neto, em especial Morte e vida severina, poema escrito em 1955 e potencializado em 1965 com a música de Chico Buarque. Desde Canudos, há exatos 120 anos, a reforma agrária, anseio fundamental do povo brasileiro, pela qual tantos sucumbiram sob o impacto de balas, é varrida continuamente pelos ventos aziagos da acumulação financeira. Na voz condutora da personagem Macabéa, Epístola.40 testemunha contornos hodiernos do desterramento de cidadãos e camponeses do Norte e do Nordeste, fenômeno iniciado nos anos 1950, com a migração, muitas vezes em conjuntos familiares inteiros, para “depósitos de homens”, franjas de capitais do Sudeste e de grande cidades do Centro-Oeste, como Brasília, a partir de 1961. Homens perversamente destinados aos serviços e subempregos mais insalubres, relegados a ajuntamentos precários de política sanitária nenhuma e tornados, assim, descartáveis como laranjas espremidas. Com abundantes referências emprestadas do universo religioso e místico popular – já a partir dos nomes de batismo em um núcleo familiar – e estrutura dramatúrgica paralela à da liturgia cristã, a peça do paraense Rudinei Borges acompanha os “passos” de calvário desses migrantes desde sua chegada. O caso enfocado é o do despejo à força de centenas de moradores da Favela do Boqueirão, na Zona Sul da capital paulista, em 2011. A partir de então, o dramaturgo conviveu cinco anos com essa comunidade. Vai-se da memória da Graça natural, no torrão natal, ao presente de inferno material em subespaços metropolitanos geradores de comprometimento físico e moral. No limite da sobrevivência, acontece o confronto. A violência policial é desmedida para aqueles que ousam reivindicar terra ou qualquer um dos pontos rezados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelo conjunto das nações em 1948, porém página a cada dia mais virada e apagada por todos os poderes do planeta de tetas exaustas ante a avidez doentia do Capital descontrolado. Declarado motivo de inspiração para a ficcionalização a partir de fatos, o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector – com sua ingênua Macabéa imigrante nordestina para o Rio de Janeiro –, sobrepõe-se, no entanto, a duas outras escrituras de alta densidade literária, embebidas igualmente de anima brasileira a ponto de se tornarem culminâncias no paradigma literário do país. São elas a obra citada de Melo Neto e os romances e contos de João Guimarães Rosa, cuja prosódia constitui alicerce evidente da escrita de Borges, como aliás já se percebia em suas peças anteriores, em especial Dezuó, de 2016. No corpo a corpo cênico, os motivos poéticos dessa escrita são envolvidos nas características extraordinárias de um espaço que se poderia declarar herdeiro – em termos físicos, intelectuais e idealísticos – do histórico Teatro de Arena de São Paulo. Na sala principal do casarão do Pessoal do Faroeste, grupo a comungar raízes paraenses com Borges – em um bairro da Luz também tornado “depósito humano” –, cinco atuantes ficam ao alcance das mãos dos espectadores. A proximidade poderia sugerir, de outro lado, estudos de emissão vocal e de acústica capazes de propiciar sons e sentidos concentrados em alturas medianas, de modo a valorizar tons médios e graves, via de regra sucumbidos em estridulações que se convenciona interpretar como urgências. Do ponto de vista dramático, a par do acento épico brechtiano bem marcado na Macabéa que narra em máquina de escrever a saga dessa “gente em arribação ininterrupta”, o autor satura de paramentos estilísticos seus desvalidos, a convertê-los em celebrantes de missa barroco-profana. Essa não é, porém, a única dinâmica empregada, e o bem-vindo resgate naturalista se dá pela via da ação exterior, no último terço. No desenho de resistências e de embate físico, os diálogos se arejam até desaguar na epifania final que sintetiza harmoniosamente as vertente anteriores. Contemplada pela 27ª edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, a encenação é assinada pelo ator e diretor Edgar Castro, com total entendimento da proposta dramatúrgica. No conjunto de ações que envolve o projeto, ressalte-se a qualidade dos materiais agregados para contar a tragédia da privação, da exclusão e do abandono. Para além da escrita teatral requintada, o conjunto da encenação trata seu espinhoso tema com toda a nobreza possível, do programa bem desenhado à distribuição, sem cobrança, de bem editado e acabado livro com texto integral da obra; de cuidados cenográficos evidentes a seminário dramatúrgico paralelo etc. Apenas esses cuidados, cumpridores, decerto, da proposta apresentada à cidade via Lei de Fomento, já reverberam profundamente no espectador, convidando-o a resgatar, não apenas na encenação, mas na coadjuvância de tantas iniciativas e detalhes, a sagrada dignidade de humanidades soterradas. Epístola.40 - Texto Crítico Link: https://rudineiborgesblog.wordpress.com/2023/08/18/recepcao-critica-da-dramaturgia-de-rudinei-borges/ José Cetra Filho O texto de Rudinei Borges trata de assuntos sociais bastante sérios, como a chegada de migrantes nordestinos na desumana cidade grande, a procura de um lugar para morar, as constantes ações de despejo dos barracos onde vivem de maneira precária e até a perda de entes queridos nos confrontos com a truculência da polícia. Como já fizera em Dezuó, o dramaturgo trata esses temas de maneira poética, com frases de linguagem sofisticada, que remetem ao grande Guimarães Rosa. Há muita poesia na prosa de Borges. O texto se inspira em A hora da estrela, de Clarice Lispector, no Primeiro Livro dos Macabeus e, principalmente, nos relatos das moradoras da comunidade do Boqueirão, situada na Zona Sul da cidade. Telumi Hellen assina a simples e criativa cenografia, que conta com objetos de cena manipulados pelos atores e que criam belas cenas de conjunto, como aquela da chegada em São Paulo. Edgar Castro dirige o todo, criando, com o auxílio da iluminação ocre de Felipe Boquimpani, bela harmonia entre o espaço cênico e os atores. Daniela Evelise é presença marcante como a protagonista Macabéa que, como sua homônima no livro de Clarice Lispector, datilografa (neste caso, as cartas dos parentes). Dona de vigoroso físico e doce voz, suas falas e as intervenções quando repete a última palavra do que alguém está lhe ditando estão entre os melhores momentos do espetáculo. Inesquecível também a cena do aprendizado da datilografia, após receber a máquina do pai, que segundo ele pertenceu ao Frei Damião. A personagem do menino Auarã, filho de Macabéa, é defendida com sensibilidade por Dionizio Cosme do Apodi. Completam o bom elenco: Alexandre Ganico (Judas, o pai), Andrea Aparecida Cavinato (Nazara, a mãe) e Heitor Vallim (Misael, o irmão). O autor soube dosar os fatos narrados com aqueles com ação dialógica, e este equilíbrio dinamiza o espetáculo. Após Dezuó, Epístola.40 reafirma o talento dramatúrgico/poético de Rudinei Borges.

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GRÃO (2021)
 

Cenografia e Figurinos: Telumi Hellen Idealização, dramaturgia e coordenação geral: Rudinei Borges Encenação e direção: Donizeti Mazonas Atuação: Edi Cardoso e Silvani Moreno Música em cena: Juh Vieira Iluminação: Decio Filho Fotografia: Keiny Andrade Design gráfico: Victoria Dias Cenotecnia: Alício Silva Assistência de figurinos e costura: Mari Moraes Assistência de produção: Leandro Lago Direção de produção: Rudinei Borges Realização: Núcleo Macabéa e Fomento à Cultura da Periferia da Cidade de São Paulo da Secretaria Municipal de Cultura Oficina Cultural Oswald De Andrade - São Paulo, Brasil

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TRANSAMAZÔNICA (2019)
 

Cenografia e Figurino: Telumi Hellen Produtor proponente: Alexandre Ganico Dramaturgia e Direção: Rudinei Borges dos Santos Elenco: Leandro Lago e Geraldo Fernandes Iluminação: Decio Filho Música em cena: Juh Vieira Fotografia: Melvin Quaresma Direção de atores: Murilo De Paula Preparação vocal e corporal: Ana Paula Lopez Designer gráfico: Felipe Uchôa Revisão de texto: Danilo Horã Assistência em cenotecnia: Lucas Lopes Assistência de produção: Ulyce W. Z. Costura: Stilo Lia Apoio Institucional: Teatro Studio Heleny Guariba, SP Escola de Teatro, Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo Realização: Cooperativa Paulista de Teatro, Prêmio Zé Renato, Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo TRANSAMAZÔNICA Fragmentos de um país rasgado pelo progresso - Texto Crítico Link: https://rudineiborgesblog.wordpress.com/2023/08/18/recepcao-critica-da-dramaturgia-de-rudinei-borges/ Maria Luísa Barsanelli Cria de uma política supostamente progressista do regime militar brasileiro, a rodovia Transamazônica foi um projeto tão grande na ambição quanto no fracasso. Depois de mais de quarenta anos desde o início das obras, a via, que ligaria a capital paraibana João Pessoa ao Peru, segue inacabada. Causou desmatamentos e problemas sociais desmedidos. Rachou a floresta Amazônica. Por essas cicatrizes é que transita o dramaturgo e diretor Rudinei Borges dos Santos em seu Transamazônica. Nascido em Itaituba, Pará, numa família de colonos migrantes da rodovia, o encenador conhece bem os meandros da região. Não à toa, cria um espetáculo fragmentado, buscando as fissuras dessa via nunca concluída. Ao dividir o todo em histórias particulares, cada qual sob pontos de vista de diferentes pessoas atingidas pelas mudanças, dá conta da magnitude do impacto daquelas obras e também aproxima o espectador dos dramas particulares. Aqueles dos colonos deslocados para trabalhar na beira da estrada, da população indígena que viu sua terra invadida, dos pistoleiros que veem a violência embutida em seu cotidiano, a crueldade banalizada. O descaso está na boca de todos. Surge em cena expresso por falas como a do personagem que diz: “Você sabe como Deus criou o mundo? Deus não criou o mundo, o mundo se criou sozinho”. Ou outro que, logo no prólogo, descreve “a gente derruída” e a “árvore derruída”, um bom resumo para o que viria a sofrer a população e a natureza locais. Afinal, aquele “sonho” de progresso, principal eixo do Plano Nacional de Integração, levou “homens sem terra para uma terra sem homens”, como definiu à época o então presidente, general Emílio Garrastazu Médici. Mas a construção da BR-230 (nome oficial da via) não foi mais que uma infeliz solução para o problema da distribuição de terras. Em vez de diminuir a concentração de ricos proprietários, o governo decidiu mudar os trabalhadores rurais, assentando-os ao longo da estrada. O texto de Rudinei carrega o público como um colono deslocado ou mesmo um viajante que transita por aquele rasgo de estrada que corta a floresta. Acompanhamos a história como se víssemos passar no mapa toda aquela distância. Cada cena é introduzida por uma rubrica, falada pelo elenco, que descreve o ambiente em que se passa aquele trecho e em qual quilometragem, ou seja, em qual altura dos 4.260 quilômetros da Transamazônica ele se encontra. Como se percorrêssemos o caminho no crepúsculo, somos introduzidos às primeiras cenas sob uma luz difusa, que vai aos poucos revelando aqueles seres sem nome e sem rosto. Os dois atores (Leandro Lago e Geraldo Fernandes) alternam-se entre narradores e personagens. Falam um para o outro sem se entreolhar, como se buscassem alguma ligação com aquela terra sem homens. Por vezes também repetem falas, ecoam vozes, emulando os fantasmas da região. Tudo soa interrompido, eventualmente abrupto, como o fim banal de muitas daquelas vidas. Interessante pensar que Transamazônica vem também de um projeto interrompido. Rudinei ensejava um trabalho sobre a missionária Dorothy Mae Stang, que lutou pela preservação ambiental e por uma divisão de terra justa na Amazônia. O encenador chegou a conviver com a americana, assassinada em 2005, no município paraense de Anapu, a mando do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, desgostoso da luta de Dorothy. O impedimento e as cicatrizes surgem, assim, impregnados na narrativa de Transamazônica. A violência, do mesmo modo, está a todo tempo imposta. Um facão é colocado à frente do espaço cênico, evidenciado por uma luz recortada e com a ponta virada para a plateia, sempre lembrando o espectador da crueldade que orbita ali. A tinta vermelha que cobre a região dos olhos dos intérpretes surge como insígnia indígena, mas logo é espalhada pelo rosto, esfregada pelas mãos, manchando como se fosse por sangue. A cor também vai sendo evidenciada ao fundo do palco, por um retângulo escarlate que rasga de alto a baixo a parede, como se abrisse ali uma fenda, uma cicatriz, tal qual a criada pela BR-230. Mas Rudinei não carrega a encenação com crueza. Tudo é feito num tom lírico, poético, como uma tentativa de renascimento dentro de tempos duros – algo semelhante ao que o encenador desenhou em Medea Mina Jeje, relato trágico da escravidão brasileira, mesclado à não menos trágica mitologia grega, mas sempre envolta de uma poesia que salta aos olhos. Aqui, a lírica está na iluminação difusa e quase fantasmagórica de Décio Filho, nos cenários e nos figurinos de Telumi Hellen, que trazem os tons de terra daquele asfalto inacabado, daquela floresta ressecada; e também camadas de renda delicada, que imprimem versatilidade para os distintos personagens e retratam o apreço de um povo que por vezes tinha nos poucos pertences a memória de sua herança, da família. Muito desse mérito também vem da musicalidade trazida em cena por Juh Vieira. Envolto em percussão e cordas, ele transita por ambientações soturnas, modas típicas, ritmos alegres e mesmo canções bregas – há um tanto de humor, por exemplo, numa cena entre dois pistoleiros que acaba num karaokê de “Índia”, dos paraguaios José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero. A presença de Juh dá fluidez à cena, cosendo e ritmando as falas dos dois atores. Os sete capítulos de Transamazônica (dentre eles, um prólogo e um epílogo) ecoam as vozes silenciadas, rasgadas pela BR-230, que surgem em cena tanto individualmente como num quadro amplo de toda a região. Não à toa, Rudinei cria ao final um registro imagético daquela realidade, encerrando o espetáculo com a descrição da fotografia de um funeral: “Era comum que aquela gente fosse fotografada entre caixões. Era comum que aquela gente vestida com camiseta pobre, sem cerimônia, se aglomerasse na carroceira dum caminhão e viajasse por quilômetros. Era comum que se acidentasse. Era comum que aquela gente morresse”. Por fim, um retrato da estrada do progresso que, em vez de interligar, alimentar, enriquecer, rasgou o país a navalha. Paisagens (in)visíveis, armas (in)visíveis: o imaginário e o imagético em Transamazônica - Texto Crítico Link: https://rudineiborgesblog.wordpress.com/2023/08/18/recepcao-critica-da-dramaturgia-de-rudinei-borges/ Bruno Machado E aquele ou aquela que é fotografado é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através da sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta uma coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto. Roland Barthes, A câmara clara O teatro sempre se estabelece na dimensão do possível. Tal como os atores Leandro Lago e Geraldo Fernandes, que se despem de camadas dos figurinos entre as cenas que compõem Transamazônica, o texto para o teatro se desfolha entre estratos de possibilidades, de sentidos e de leituras. A dramaturgia de Rudinei Borges dos Santos se situa na dimensão do possível ainda no urdimento, antes mesmo de chegar ao palco, à voz dos atores ou à fruição do público. “Transamazônica é uma peça interrompida”, escreve o dramaturgo no verso do programa do espetáculo. De fato, ante às notícias da violência que imperava na região Norte, o autor desistiu da viagem que faria ao interior do Pará, em 2018. “Assim, entre percalços, o que apresento em breves escritos são fragmentos desse impedimento, fractais do que poderia ser uma obra cênica, cicatrizes que restam nos corpos de indígenas e colonos que até hoje habitam as margens da história e de uma rodovia esquecida no coração da Amazônia”. A obra resultante é, assim, um conjunto de instantâneos; fotografias possíveis que o autor-narrador nos e se apresenta. Porque a Transamazônica – o faraônico fracasso que rasgou o interior nordestino brasileiro rumo à fronteira peruana – é também e somente possível, inescapavelmente transpassada pelos caminhos do afeto e da memória. Paraense de Itaituba, Rudinei Borges dos Santos traz ao público a Transamazônica que tem dentro de si, num percurso imagético fotojornalístico, mas também autoficcional. No processo de autonarração, o percurso dramatúrgico que se estabelece é duplo e dúbio – confundem-se caminho e viajante: é o dramaturgo que percorre a estrada da memória, ou é a memória do dramaturgo que, por sua vez, como asfalto, se sedimenta no trajeto transamazônico? Se esta ficção é também uma ficção do e sobre o autor, ele está devidamente inserido na paisagem que investe contra o para-brisa, junto dos demais personagens: pistoleiros, meninas indígenas, curandeiras, colonos, ele mesmo e a memória da mãe. Como instantâneos, tais figuras fantasmagóricas, habitantes da lembrança, estão decalcadas na paisagem, invisível, mas materializada como quadro em movimento na voz e no corpo dos atores. No banco do passageiro, o espectador é atravessado por placas de sinalização, destroços (“de si e do tempo”), cruzes, descampados, aldeias, gente e bicho, que sangram de um mesmo vermelho. O olhar do narrador-dramaturgo sobre tais cenas, paisagens e personagens – unos, pois contidos uns nos outros, e aqui inclui-se também narrador-dramaturgo – opera sob o tempo e a lógica da memória, quando vista da janela: ora se detém sobre um detalhe presente no quadro, ora o dispensa a favor do todo, numa dinâmica em que contínuo e lacunar suplantam-se até o fim do trajeto: blecaute. Dinâmica similar opera no processo de sugestão e estabelecimento de relações, como se os retratos que compõem a dramaturgia povoassem uma mesma grande tela, compartilhassem de uma mesma natureza comum, uma herança, uma árvore genealógica. Quando analisado, o texto exibe por moldura a violência, seja como arma de justiça, oficial e clandestina – policiais e matadores de aluguel – ou de injustiça: a colonização, a dizimação da floresta, das populações e culturas indígenas. Em cena, do teto, verte um pano vermelho: a estrada que liga nada a lugar algum, feita de, e que leva consigo somente sangue e silêncio – natureza comum, herança, árvore genealógica. Arma branca, sangue vermelho No exercício teatral da possibilidade, o diretor Rudinei Borges dos Santos, assim como quando nas funções de narrador-dramaturgo, opera pelo processo de visibilizar e invisibilizar. Fortemente sedimentada em texto e atuação, a montagem encontra potência imagética, paradoxalmente, na economia das imagens. Pouco é mostrado ao espectador: os ângulos da câmera são fechados; a costura entre os fotogramas, fragmentária. Assim, a violência que impera, como caminho e obstáculo – artéria e coágulo –, surge em cena não pelo que é, mas pelo que produz: ausência. Já na primeira cena de Transamazônica, uma criança e um pistoleiro conversam sobre armas de fogo. O menino sonha com espingardas e metralhadoras, ao que o matador lhe informa estar de posse de um revólver. A pistola, contudo, nunca se materializa, seja na dramaturgia, seja no palco – permanece como sugestão, símbolo empunhado pelos personagens: o diálogo termina com a rubrica “(Tiros ao longe.)”. Ao longo do texto, outras armas aparecem. A única que se realiza em cena é um facão, utilizado por uma colona na Cena 3, “Mucura”. Aqui, a arma branca é tão palpável e concreta quanto a sua finalidade: matar animais para dar de comer aos filhos. É também uma arma empunhada por uma figura feminina, como se o dramaturgo enxergasse na mulher anônima a dignidade de uma Diana que, enquanto limpa a presa abatida, chora por Cristo crucificado, agonizando de morte e de sede. A violência, por fim, parece não caber mais nas armas ou naqueles que puxam o gatilho. Transborda como cultura roubada, sequestrada, estuprada, espoliada e vendida como produto – os versos de “Índia”, entoados em uníssono por um par de pistoleiros bêbados e trôpegos, óculos escuros escondendo os rostos, às margens da BR-230. A violência é a própria estrada: o rasgo, a paisagem desfigurada, onde jazem os destroços “de si e do tempo”. Memória e história irrompem uma ferida de cinco mil quilômetros de extensão, ainda por cicatrizar a dor dos torturados e mortos pela violência, não mais clandestina ou oficial, mas apenas violência. Uma mão de criança empunha uma arma de fogo invisível – um instantâneo. Um exame histórico-balístico indicaria que o projétil se lança do passado, a Transamazônica, fóssil vivo da ditadura brasileira, e investe contra outro cano de revólver invisível, desenhado no ar pelos dedos de outra mão infantil. Crianças que brincam de pistoleiro, índio e caubói, junto aos destroços de uma rodovia. Junto às ruínas da democracia. Transamazônica - Texto Crítico Link: https://rudineiborgesblog.wordpress.com/2023/08/18/recepcao-critica-da-dramaturgia-de-rudinei-borges/ José Cetra Filho Transamazônica, segundo o programa da peça homônima, é uma “estrada que liga nada a lugar nenhum”,projeto megalomaníaco de governos prepotentes que causou enorme e irreversível dano ao meio ambiente e aos habitantes da região. O dramaturgo paraense Rudinei Borges dos Santos nos propõe uma viagem por vários trechos dessa estrada especificando o quilômetro e a cidade visitada. Em um prólogo, cinco capítulos e um epílogo, o público toma conhecimento de sete situações vividas por colonos, indígenas, pistoleiros e crianças narradas e interpretadas com garra pelos atores Geraldo Fernandes e Leandro Lago. As narrativas são acompanhadas por canções e pelo som hipnotizante criado, ao vivo, pelo carismático Juh Vieira, cuja presença e som são tão envolventes que chegam a desviar a atenção do espectador. Com sua veia poética e facilidade em lidar com as palavras, Rudinei trata de assuntos sérios, e até trágicos, com muita delicadeza e beleza, haja vista o belíssimo e triste capítulo “Iraxeru”, no qual o espírito de uma menina retorna ao local onde era sua aldeia, e esta não existe mais; e até aquele dos pistoleiros, em que se cita, de passagem, o assassinato de uma assim chamada freira comunista, referência à missionária Dorothy Mae Stang (1931-2005). De início, o dramaturgo tinha a intenção de escrever uma peça sobre esse assassinato, mas foi impedido de viajar à BR-230 por notícias de violência na região. Esperemos que isso ainda venha a ocorrer, para que o teatro também se torne testemunha desse trágico fato que aconteceu em 2005 na localidade de Anapu (quilômetro 2.375 da estrada, segundo a peça). O cenário sóbrio de Telumi Hellen é um espaço cênico vazio com um longo pano vermelho ao fundo, talvez simbolizando todo o sangue já derramado na região. A iluminação de Décio Filho direciona a ação dos atores.

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